domingo, 6 de fevereiro de 2011

A hierarquia do churrasco.

       Quando entramos numa churrascaria, esquecemos o bom senso. Ficamos meio primitivos, animais rosnando, sem tempo de repor o guardanapo na boca. A vontade é pegar a carne com as próprias mãos, cortar com os dentes e sentir o sangue escorrer pelo queixo.
       É o fim da etiqueta. Não há declaração de casamento que possa ser feita num espeto-corrido. O noivo abrirá a caixinha aveludada do anel com as mãos gordurosas? Como começará o assunto?
       — Amor, queria dizer algo importante…
       — O quê?, a possível noiva tenta se desvencilhar do bife e acelerar as mordidas.
       — Tudo bem, eu espero terminar o pedaço…
       Só que chega outro e outro e outro pedaço e não existe pausa de cinco minutos para uma confissão arrebatada. E o possível noivo suará frio, assustado com o número de pedidos de sua musa e logo vai concluir que não terá dinheiro suficiente para manter o relacionamento.
      Toda mesa é uma jaula com fome. O espeto corrido tem suas artimanhas, toalha de mesa de papel, que será retirada com o novo cliente, palitos Gina para usar tanto na dentição como de colher no cafezinho, e os potes de farinha branca e mista, que servem para a criança brincar de escorregador no prato.
      O que predomina no salão é uma melancolia de ossos. Um sentimento de inferioridade na saída, uma desilusão de que nunca seremos capazes de dar conta do recado. Há um desespero auditivo, com ofertas das mais diversas carnes disparadas de todos os lados, um desespero olfativo, complicado diferenciar os cheiros, e um desespero gustativo, o medo de perder aquela joia da brasa, o que impele o freguês a aceitar indiscriminadamente o que aparece pela frente.
     Churrascaria é uma festa de família somente com desconhecidos. É muita intimidade para ser partilhada com estranhos. Impossível ser educado, não arrotar, não cometer alguma gafe. É coisa para vikings.
     Mas há uma hierarquia secreta entre os garçons, que poucos reparam, tão concentrados em compensar o valor do rodízio.
     Já enxergou jovem segurando o espeto de picanha? Claro que não. É arte para veterano. O garçom da picanha será o mais antigo da casa, o general da faca. É o funcionário graduado, com medalhas de combate nos esbarrões. Localiza os clientes pela colônia e tem a patente abaixo unicamente do dono do restaurante.
     Em seguida, descobriremos o protagonista dos filés, um agente secreto entre a cozinha e o bar, com informações quentes dos andares da churrasqueira e da disponibilidade real do frigorífico.
     Depois, os atendentes da maminha, do vazio, da alcatra e do lombinho, um terceiro escalão ainda digno e solicitado, que costuma fazer o maior número de piadas para galgar posições e a simpatia dos comensais.
     No quarto bloco, os amigos do matambre, da costela, do cupim e da costelinha de porco, um grupo modesto, com no máximo três anos de ofício. Ambiciosos, porém sofridos com o excesso de rondas. Recebem um salário um pouco mais alto do que o guardador de carros. Escutam excessivas recusas, dependem de plantão psicológico para suportar a desvalia e a negatividade do trabalho. Obrigados a explicar, a cada instante, que a “picanha já vem”. São conhecidos como a esperança do boi. Discutem o relacionamento de madrugada com a mulher, sempre inflexível com o posto do marido, teimando que ele é frouxo e deveria tentar se impor e aumentar as estrelas do avental.
     Na rabeira, encontraremos os gurizotes. Sim, os estreantes, com espinhas na cara e barbicha de bode, admitidos recentemente no lugar, que necessitam experimentar privações e vexames para se tornarem homens duros e bravos, preparados ao selvagem atendimento do público. Eles pastam mais do que passam. Responsáveis por carregar bandejas de coração de galinha, de salsichão e de abacaxi. Não desfrutam o direito de manejar espeto e lâminas de guerra. Estarão abastecidos de patéticas colheres e pegadores.
     Formam uma brigada inofensiva, de garotos de recados. Experimentam a suprema humilhação numa churrascaria: são os únicos garçons desarmados.' 

Fabrício Carpinejar.

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